O percurso histórico da natureza jurídica das ditas corporações profissionais, também conhecidas por Conselhos ou Ordens, entidades responsáveis pelo registro, fiscalização e controle ético das atividades profissionais, reguladas por legislação federal própria, têm sofrido uma clara e contraditória indefinição no Brasil. Ora são entidades de natureza jurídica de direito público, ora são de direito privado.
No momento, vivemos no pior dos mundos: das 29 entidades que congregam distintas profissões, somente uma, a OAB, é de direito privado; todas as demais 28 são de direito público. É mais do que urgente e importante a homogeneização conceptual e operacional da natureza jurídica dessas entidades, à luz da experiência crescente e dominante em todo o mundo e diante das inúmeras disfuncionalidades que tal realidade já acarreta à gestão pública brasileira, com repercussões cada vez mais negativas num futuro próximo.
As corporações profissionais exercem, por delegação legal, atividades chamadas de “poder de polícia” do Estado. Melhor diria, atividades disciplinares de regulação sobre seus registrados. Por isso, certamente devem ser tratadas como pessoas jurídicas de direito público no que se refere ao desempenho de suas responsabilidades institucionais de fiscalização, de regulação e de sancionador, constitutivas de suas atividades-fins essenciais, razões de ser de suas existências.
Devemos, obviamente, acompanhar a orientação já proferida pelo STF – Supremo Tribunal Federal, no sentido de que tais responsabilidades, acima referidas, por serem típicas do Estado, só podem ser exercidas por pessoas jurídicas de direito público, submetendo-se aos respectivos controles conexos. No entanto, no que tange à gestão e à autonomia administrativa-financeira, como, por exemplo, de pessoal e de contratações em geral, a aplicação tout court do regime peculiar das entidades tipicamente estatais de direito público, quer da administração direta quer da indireta, constitui-se num equívoco sem precedentes na administração pública brasileira, vis-à-vis à independência de que os Conselhos devem, por sua natureza e atipicidade, gozar em relação ao Estado propriamente dito. Aliás, também nessa matéria devemos nos socorrer do STF que em relação à OAB já prolatou decisão clara e definitiva pelo entendimento da sua natureza jurídica específica e institucionalmente atípica.
É preciso, repise-se, afirmar bem forte a necessidade de a administração pública brasileira acompanhar a experiência internacional em direção à exclusão das corporações profissionais como entidades integrantes do âmbito da administração pública direta e indireta.
É evidente que as corporações profissionais devem se submeter aos princípios característicos da administração pública, quais sejam, os da legalidade, legitimidade, moralidade, eficiência, interesse público e social, razoabilidade, impessoabilidade, economicidade e da publicidade. Devem, em contrapartida, estar isentas ou excluídas da aplicação das regras e normas das entidades estatais que versam sobre contratação administrativa e de servidores públicos. É preciso lhes assegurar a plenitude da preservação de sua autonomia administrativa. Devem também adotar todos os atos próprios, processos e procedimentos de gestão financeira, contratação e seleção de pessoal, estruturas de remuneração etc. que condicionam a formulação de políticas e de ações administrativas da administração pública strictu sensu. Devem publicar anualmente suas demonstrações contábeis-financeiras, e prestar contas nos termos do parágrafo único do artigo 70 da Constituição Federal, o que as obriga à apreciação pelo TCU, dentro dos limites determinados pelo respeito à autonomia que lhes deve ser conferida por lei.
Em síntese, as corporações profissionais, no que se refere ao desempenho de suas atividades-fins de regulação, fiscalização e sanção, sujeitam-se ao regime jurídico de direito público, sendo seus atos dotados dos atributos próprios dos atos administrativos praticados pelas entidades públicas e dispor de prerrogativas próprias de autoridade.
Os Conselhos Profissionais também sofrem de visível esvaziamento e perda de legitimidade em decorrência da repercussão que absorvem diretamente pela situação original de fragilização de seus profissionais registrados junto aos mercados-clientes em que atuam. Não é só a indefinição histórica da natureza jurídica dessas instituições, o que já os abala sobremaneira. Mas também as relações entre o profissional, prestador de serviços, e o seu cliente se desgastam velozmente pela absorção da democracia consumista globalizada que vivemos nos tempos presentes.
As relações entre o médico e o paciente, a enfermeira e o doente, a nutricionista e o comensal, o advogado e o assistido, o professor e o aluno, etc. ajustam-se e amoldam-se às relações contratuais entre indivíduos iguais que postulam relações também iguais de prestação de serviços entre fornecedor e cliente.
Mesmo o padre e o crente, e todas as demais lideranças espirituais de quaisquer cultos, também se submetem a essa nova lógica da sociedade globalizada.
Assim, o homem moderno globalizado se impacienta diante de qualquer competência ou pretensa autoridade que queira minimizar ou desqualificar a sua própria soberania como cliente. Costuma-se dizer: é preciso encantar o cliente porque o cliente é pior que Deus. Deus perdoa, mas o cliente não. É preciso fidelizar o cliente, senão ele voa para o concorrente. E assim todos os profissionais pouco a pouco perdem a prerrogativa, privilégios e autoridade diante de seus assistidos, cada vez mais conhecidos como clientes, exigentes e demandantes de seus direitos.
Todas as práticas profissionais hoje estabelecidas tendem a se banalizar, perder prestígio social, status na sociedade. E pior: instituir redes de proteção jurídicas contra as ações movidas por clientes inconformados.
Assim como o médico torna-se um assalariado da Previdência Social ou dos Planos de Saúde, os advogados são vistos como empregados de escritórios e todas as demais profissões seguem o mesmo roteiro de esvaziamento político e social. As profissões que antes instituíam alguma forma, mesmo que indireta ou frágil, de representação política social vislumbram cenários progressivos de deslegitimação face à realidade consumista que se coloca na nova sociedade de mercado. Esta constatação aliada à indefinição da natureza jurídica coloca em severo risco a incolumidade dos órgãos classistas em nosso país.
Sobre o autor:
Adm. Wagner Siqueira: Vereador pelo Rio de Janeiro. Atual Presidente do Conselho Regional de Administração do Rio de Janeiro e Membro da Academia Brasileira de Ciências da Administração. Foi Secretário de Administração, Presidente do Riocentro e Secretário de Assistência Social da Prefeitura do Rio. Consultor de organizações e autor de livros e diversos artigos sobre as ciências da Administração.
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