Estamos perdidos. Apesar do excesso de opções e informações fabricadas no cotidiano do século XXI, que buscam apaziguar a dor do não saber, o ser humano continua paradoxalmente mais perdido. O filósofo francês Gilles Lipovetsky comenta que a quebra dos paradigmas antigos no final do século XIX contribuiu para adquirirmos liberdade de escolha, porém interpretamos este movimento de forma negativa. O ser humano ficou com medo da surpresa que a Pós Modernidade proporcionou e acabou agindo de forma reativa, pluralizando e excedendo as respostas antigas criadas desde a Modernidade. Pluralizamos tudo! Vivemos o mundo dos excessos: remédios, telefones, diagnósticos, alimentos, bens de consumo, religiões, universidades, cursos de graduação, livros, carros etc. O excesso de opções hoje é uma resposta à tentativa de não ficarmos perdidos diante da liberdade de escolha pelo inusitado, porém, paradoxalmente, continuamos desorientados! É a crise do homem desbussolado, segundo Jorge Forbes.
Para aqueles que não acreditam, basta fazermos uma pesquisa de campo, perguntando a qualquer pessoa se já encontrou o sentido da vida, se gosta do seu trabalho, ou se está apaixonada pelo que faz. Provavelmente ela responderá que ainda não encontrou o seu propósito. Em uma pesquisa realizada com quase 2 milhões de pessoas pelo Instituto Gallup, 80% dos entrevistados não acreditam que utilizam seus pontos fortes no trabalho. Para termos uma ideia, até as metodologias focadas em encontrar a vocação das pessoas tentam fazer sua parte, mas acabam sendo vazias e superficiais quando se trata de localizar qual é a essência, talento, ponto forte e propósito de cada ser humano.
Por isso, proponho desenvolver algumas reflexões sobre um ponto essencial para encontrarmos sentido na vida: o talento. Quando descobrimos nossos talentos, entendemos nosso propósito e o sentido da vida. Vale mais do que prata e ouro!
O que é o Talento?
Do latim talentum – “inclinação, desejo de fazer, de realizar” – a palavra em si, assim como tantas outras, não se permite a uma classificação universal, categórica e padronizada. Neste artigo definiremos Talento como um conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes diferenciados em cada indivíduo, que se repetem de forma prazerosa e são reconhecidamente produtivos aos olhos dos outros. É o que Ken Robinson nomeia como “elementos-chave”. Todos nós temos uma série de elementos-chave na composição de nossa personalidade, que podem se tornar pérolas quando são desenvolvidos, lapidados e inseridos no meio social. É o que o gênio da música Hermeto Pascoal chama de tempero. Todo molho para não ficar “sem graça” precisa de um temperinho diferenciado.
Deus fez cada pessoa de forma diferenciada e singular para que encontre e realize o propósito estabelecido nessa vida.
Vamos a algumas dicas fundamentais para conseguirmos encontrar e inserir nossos talentos no mundo?
1ª Dica – Lutando contra a Mediocridade Social
Um dos maiores fatores que dificultam o caminho para encontrarmos nossos pontos fortes, chama-se sociedade. Desde a infância somos influenciados a nos considerarmos padronizados, medianos e categorizados. Resumidamente, a sociedade, de forma inconsciente e tirânica, impõe em nossas mentes que devemos ser medíocres. Ainda hoje, a maioria das escolas acredita que através do ensino comum poderão desenvolver seus alunos, por isso investem mais no padrão de ensino pré-vestibular, deixando de lado o aprendizado a partir da reflexão e construção do conhecimento. Não é por nada que matérias como educação artística, música, filosofia e teologia foram sendo eliminadas gradativamente.
Além disso, existe nas diversas comunidades a dificuldade de lidar com a diferença do outro. Por isso, é preferível encaixá-lo em algum tipo de classificação. Nas escolas, quando alguém ousa sair dos trilhos rapidamente é classificado com algum diagnóstico “universal”, como hiperativo, ou qualquer outro transtorno de personalidade. Ou seja, não te olham através dos pontos fortes, mas naquilo que você diverge negativamente do senso comum. O mesmo também acontece nas empresas. De forma cômoda existe uma tendência em colocar cada indivíduo em um tipo de caixa comum aos olhos de todos. Isso explica a oferta enorme de ferramentas e metodologias da personalidade. Tais ferramentas tem sua importância para o desenvolvimento organizacional e não devem ser descartadas, porém é importante tomarmos cuidado para não engessarmos as pessoas em “padrões universais”, correndo o risco de apagar a luz diferenciada de cada um.
Pessoas diferenciadas incomodam e, muitas vezes, são ridicularizadas pelos “iguais”. Por exemplo, o criador dos Simpsons, Matt Groening não terminou o ensino médio e desenhava em média 20 desenhos por dia. Como não conseguia seguir o padrão de ensino comum, seus pais decidiram investir em seu talento e o garoto foi para o mundo executar o que mais gostava de fazer: desenhar. Num belo dia, em um serviço como freelancer para a Fox, improvisou a criação de um dos desenhos mais famosos do mundo. John Bunyan, antes de escrever um dos maiores clássicos da literatura cristã, “O Peregrino”, foi perseguido e preso por causa de suas ideias diferenciadas. Freud foi ridicularizado pela classe médica com suas primeiras teorias sobre a histeria. Não importa o tempo, ou o momento, enquanto existir humanidade, sempre haverá a luta da singularidade contra a mediocridade.
2ª Dica – Encontrando a Repetição Satisfatória
Uma grande maneira de identificar onde está o seu talento é na repetição. Todo ser humano repete determinados padrões de crenças, comportamentos, sensações e habilidades de forma consciente ou inconsciente. Este investimento na repetição fornece rastros valiosos sobre a localização da satisfação, ou seja, o ser humano só repete aquilo que lhe causa prazer, que lhe toca o corpo e que atinja suas emoções. Os Beatles investiam muitas horas por dia tocando em velhos bares da Europa, Oscar Schmidt, o famoso “mão santa” do basquete brasileiro treinava seus arremessos a ponto de sentir dor e Bill Gates reservava as férias para ficar manuseando chips de computadores. O que essas pessoas têm em comum? Repetem satisfatoriamente suas habilidades, comportamentos, sensações e crenças.
Por isso, na sua investigação procure identificar em seus padrões de crenças, comportamentos, sensações e habilidades onde existe repetição que esteja associada a algum tipo de prazer ou satisfação. Quando encontrá-lo, invista toda sua energia e coração neste alvo, porque a probabilidade do sucesso será maior.
Mas por favor, cuidado com a interpretação sobre o que é prazer ou satisfação na sua vida. Existem pessoas que tem prazer de tocar, dançar, ou cantar, porém não têm a menor aptidão para praticar tais atividades. Por isso, é importante enxergar todas as dicas do artigo como um todo.
3ª Dica – Reconhecendo-se no Olhar do Outro
O olhar do outro é a melhor forma de enxergarmos o que há de melhor dentro de nós mesmos. Como existem nuances específicos para destacar as aptidões de cada ser humano, o olhar do Outro se torna o melhor examinador para enxergar quais são suas qualidades peculiares e repetitivas, que diferem do senso comum. Salvador Dalí, considerado lunático entre os surrealistas, precisou do suporte social, psicológico e financeiro de sua esposa para ser reconhecido como um grande artista do Surrealismo. Roberto Carlos Ramos foi adotado por uma francesa maravilhosa que forneceu todo amor que o ajudou a quebrar todos os paradigmas negativos sobre sua infância traumática e lhe deu base para se transformar no famoso “Contador de Histórias” do Brasil. O pai de Zezé de Camargo e Luciano apostou todas as fichas para fazer a dupla uma das mais famosas da música sertaneja. Bernardinho começou sua brilhante carreira de técnico da seleção brasileira de vôlei, a partir do convite de uma amiga que destacou seu grau de exigência para estimular a excelência nos outros. O grande investidor Warren Buffet teve como mentor seu professor e parceiro de trabalho Ben Graham, que lhe forneceu todas as ferramentas para expandir seu talento.
Portanto, quando uma, duas ou mais pessoas lhe fizer um elogio pontual, diferenciado em relação a outras pessoas, preste bastante atenção, pois pode ser o caminho para descobrir seus pontos fortes e consequentemente direcionar para o seu propósito de vida.
4ª Dica – Transformando Defeitos em Qualidades
Muitas pessoas ainda não conseguiram identificar seus pontos fortes porque desconhecem que, paradoxalmente, poderiam iniciar sua investigação identificando seus principais defeitos. Exatamente! Muitas vezes as nossas qualidades podem ser descobertas a partir dos defeitos que costumamos repetir na vida. Ken Robinson em seu livro “O Elemento Chave”, nos conta a história ilustrativa da coreógrafa Gillian Lynne, que aos 8 anos de idade tinha um “problema” que hoje poderíamos denominar como hiperatividade. Porém, naquela época (1930) não existia este nome para o “transtorno” e muito menos existia a droga ritalina, utilizada para engessar o comportamento das crianças. Por este motivo, Gillian teve que visitar um psicólogo para tentar corrigir sua “falha” social. Porém, o profissional que a atendeu não enxergou doença na doce menina e orientou sua mãe a encaminhá-la a um lugar onde as pessoas pensassem com o corpo, como uma academia de dança. Após alguns anos de treino, Gillian não se tornou apenas uma dançarina de balé, mas ganhou diversos prêmios mundiais e hoje é considerada uma das maiores coreógrafas do mundo. Foi responsável pela criação dos espetáculos Cats e o Fantasma da Ópera!
Olha que maravilhoso! Um diamante brilhante poderia ter sido apagado se não fosse a sensível percepção do psicólogo que conseguiu enxergar em Gillian beleza no lugar da doença, que por sua vez conseguiu direcionar sua energia supostamente “negativa”, causadora de problemas, em algo construtivo e positivo.
Assim como Gillian, todo ser humano tem a capacidade de transformar defeitos repetitivos, negativos e destrutivos em qualidades repetitivas, positivas e produtivas. Lembro-me da época em que trabalhava no Hospital Psiquiátrico e havia um paciente com um quadro muito grave, pois com frequência tinha o ato repetitivo de cortar a própria pele. Durante algumas sessões de Terapia Ocupacional a psiquiatra teve a brilhante ideia de estimular o paciente a desenhar madeira com ferro quente. O sucesso terapêutico foi tão grande que o paciente deixou de cortar sua pele para fazer desenhos na madeira durante sua vida. No mundo atual, é uma prática comum das empresas contratarem hackers para fornecerem dicas de segurança.
Portanto, a partir desses exemplos visualizamos que o ser humano é capaz de canalizar sua energia repetitiva, negativa e destrutiva para uma energia repetitiva, positiva e produtiva, que Freud chamou de sublimação.
5ª Dica – Nomeando-se a partir do Olhar Singular e Positivo
O talento pode ser destacado, elogiado e nomeado através do diagnóstico singular, que foge do diagnóstico “universal” e medíocre. Esta é uma prática muito promovida pela Psicologia Positiva. Marcus Buckingham comenta em seu livro “Descubra seus Pontos Fortes”, que normalmente estamos acostumados a categorizar as pessoas através de diagnósticos “universais” focados na enfermidade do outro, como hiperatividade, depressão, transtorno obsessivo-compulsivo, obesidade etc. Porém, a Psicologia Positiva promove a criação de um diagnóstico focado nos pontos fortes e singulares de cada pessoa. É o que Jacques Lacan, psicanalista francês, chamou de Nome Próprio, pois acreditava que um paciente estava mais perto da saúde quando chegava mais próximo da descoberta de um nome diferenciado que fizesse parte somente daquela pessoa.
Nos quatro cantos do mundo podemos detectar pessoas sendo nomeadas, não a partir do nome comum, mas a partir do Nome Singular, dos pontos fortes. Por exemplo, Édson Arantes do Nascimento se tornou o craque do futebol “Pelé”, o lutador Anderson Silva se tornou o “Homem Aranha”, Freud, o “Pai da Psicanálise”, Charles Spurgeon o “Príncipe dos Pregadores”, Roberto Carlos Ramos o “Contador de Histórias” e Aristóteles “O Filósofo”. Inclusive, na própria Bíblia podemos perceber que a vontade de Deus sempre foi destacar o propósito diferencial de cada ser humano: Simão se tornou “Pedro”, Jacó se tornou “Israel”, Saulo virou “Paulo”, João e Tiago foram nomeados como Boanerges, “Filhos do Trovão”.
Portanto, é importante entendermos que Deus criou cada ser humano diferente um do outro, porque cada um tem seu talento, seus pontos fortes e seu propósito de vida diferenciado. Por isso, não se acomode na mediocridade, lute a favor da sua singularidade, pois assim estará lutando por algo honrado e terá a certeza da sua Missão nesta Terra.
BIBLIOGRAFIA
BUCKINGHAM, Marcus. Descubra seus Pontos Fortes. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.
FORBES, Jorge. Você quer o que deseja? Rio de Janeiro: Best Seller, 2003.
LIPOVETSKY, Gilles. Os Tempos Hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.
ROBINSON, Ken. O Elemento Chave. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010.
Sobre o autor:
Rodrigo Ramos é Psicólogo, Palestrante e Escritor, com formação em Psicanálise, MBA em Gestão de Empresas e vasta experiência em Coordenação de Grupos. Atua há mais de 8 anos ministrando palestras e treinamentos com foco no desenvolvimento do capital humano. Ao longo de sua carreira liderou e participou de projetos de treinamento e consultoria para empresas como Ford, Itaú, Embratel, Unilever e Volkswagen.
e-mail: rodrigoramosconsultor@gmail.com